FADING: o quanto nos dá que pensar o tema desta exposição! Como ele nos confronta com a ação do tempo na nossa existência, pondo-nos perante a ideia do DESVANECIMENTO da memória e do corpo, esses elementos fulcrais do que somos, do que fomos, por serem a nossa ligação ao outro e aos outros, por construírem o passado e o presente, por gerarem em nós a percepção do futuro. A inevitabilidade do “desvanecimento”, que aos poucos vai acontecendo na nossa vida e que não há que tomar como mero castigo que a existência nos impõe, mas como algo que torna possível a permanente reinterpretação e reinvenção do passado e do presente, que de certa forma as estimula, e que nos abre ao sonho do futuro — essa nebulosa em que tudo parece também desvanecer-se e reconstruir-se, deixando-nos entrever a incontornável mobilidade da nossa vida, esse contínuo de transformação a que não podemos escapar. Numa palavra: o TEMPO, fio condutor da existência do universo e nele, da humanidade. Tudo isto se encontra presente de forma poderosa nas obras que Paiva Raposo nos apresenta nesta exposição. O vídeo, ou o conjunto de vídeos interligados, mostra-nos de forma incisiva essa ideia do movimento do corpo que se vai desvanecendo para logo voltar a afirmar-se, num vai vem em progressão que a vida o obrigará a reconhecer e a assumir: é essa a massa de que somos feitos. A figura feminina que diante de nós obsessivamente se desloca de um para outro lado, num passo regular que se vai tornando mais e mais rápido, mostra que está ali um corpo que segue o seu caminho em busca de um tempo que tenta “agarrar” — ora surgindo como imagem focada e nítida, ora tornando-se nebuloso como que a lembrar aquilo que no ser humano inexoravelmente se vai desvanecendo: fading, não só no corpo, mas também na memória, o que ressalta aqui das momentâneas paragens em que ela nos olha de frente ou se aproxima da parede virando-nos as costas, parecendo hesitar, ansiosa, em busca de algo perdido no passado que no seu íntimo se esforça por trazer ao presente. E o espaço físico em que essa figura se move está também ele a desvanecer-se, belo na perda do “bem acabado” que na sua remota origem outrora ostentou. A parede de fundo que tudo enquadra aparece manchada e grafitada pela ação do tempo e do abandono, estando ali como que a dramatizar o caminhar silencioso sem fim daquela mulher trajada de branco, que na sua marcha de constante verticalidade, braços ao longo do corpo, mais se assemelha a uma coluna em movimento. O que resulta é não só uma imagem de grande beleza, realçada por uma música obsessiva que com ela se identifica no ritmo e na sonoridade, mas algo que tem como efeito perturbar-nos e fazer pensar. Há depois um impressionante conjunto de pequenas imagens de um mesmo rosto (e apenas o rosto) — aliás o da mulher |
que se move no vídeo — belo e expressivo rosto ovalizado a lembrar efígies de mulher romana. Olha-nos de frente e na sua múltipla representação o pintor não cessa de nos mostrar os avatares de uma aparição que nunca é igual, que de imagem para imagem sempre vai mudando, pelo recurso a diversas formas de transformação — por vezes de ocultação — trabalhadas em traços ou manchas pintadas sobre a fotografia, a qual é por sua vez igualmente submetida a alterações diversas — um modo de manifestar a ideia de desvanecimento da imagem do ser representado. Aquela mulher que está ali a olhar-nos nos olhos, sendo sempre ela, logo a seguir já não é bem a mesma, o seu rosto desvanece-se e assume novas e múltiplas formas de presença, num devir existencial que nunca para. Ligada a esta ideia de “desvanecimento”, há ainda outra, não menos determinante, — que aliás foi tema e título duma anterior exposição de Paiva Raposo na Fundação Medeiros e Almeida em Janeiro de 2014: a ideia do SILÊNCIO. Na verdade, ao pensar no processo de progressivo desvanecimento que subjaz à vida de todo o ser humano, não podemos imaginá-lo senão como algo de silencioso, algo que faz o seu caminho no recôndito do nosso ser, longe do ruído — dos ruídos — que são o fardo da nossa passagem pelo mundo e que tantas vezes nos impedem de tomar consciência daquilo que somos como seres itinerantes, inacabados, a morrer e a renascer um pouco todos os dias. O silêncio, tal como a memória e o corpo, é fronteira que delimita o território da existência. Para melhor nos conhecermos e situarmos, para nos abrirmos ao outro e à visão do mundo e do que ele tem de sublime, para apreendermos o destino que a vida nos vai convidando a construir, há que cultivar, duma forma ou outra, o silêncio interior, dando-lhe tempo para que ele nos ajude a moldar aquilo que podemos fazer da vida e a compreender as formas incontornáveis de desvanecimento de nós próprios que ela implica, assumindo-as. Mas é outra forma de silêncio, o da morte nos horrores da guerra, que o autor nos mostra no segundo núcleo desta exposição, uma fase do seu trabalho originada pela visão do que foi há anos o morticínio da guerra da Bósnia. Olhamos estas telas de grandes dimensões que nos mostram as muitas formas perturbantes de destruição e desolação, e misteriosamente não é o ruído das armas e o clamor dos gritos que somos levados a percepcionar, mas sim o silêncio, digamos mortal, avassalador, que se desprende daquelas imagens dum tempo que parou em cada um daqueles momentos. A pintura de Paiva Raposo, na linguagem e na técnica que utiliza, expressa tudo isso de uma forma que faz com que a mensagem se grave em nós sem que a ela possamos fugir. João de Almeida, texto do Catálogo da exposição "Fading", Palácio do Egipto, Dezembro de 2015 a Janeiro de 2016.. |
Sabemos, com Theodor Adorno, que toda a obra de arte é enigmática. Daí que a sua expressa factura possa ser de dífícil compreensão. Perante uma pessoal linguagem pictórica, a do autor obviamente, o utente menos afoito ou mais distanciado da arte em geral, terá tendência a questionar-se sobre o que lhe é apresentado. Deliberadamente ou não poderá perder-se e confundir-se no que lhe é exposto. Uma proposta que é resultante da vivência, da sensibilidade e da posição geográfica do seu autor. Ser testemunha ocular ou ser testemunha receptora são situações , à primeira abordagem, adversas. Mas não se deverá sustentar, quanto a mim,que são situações opostas. O olhar vivido e sentido e o olhar pressentido ou ocasional, são uma sequência de diferentes atitudes que podem confinar-se conquanto não se equacionem de modo semelhante e nem sequer se igualem. São aproximações que, sem se completarem, se entranham e se adaptam ou não, fazendo do belo e do medonho lugares de um possível entendimento. Sabemos ainda, com Adorno, que toda a obra de arte diz sempre alguma coisa. Dever-se-à todavia esclarecer que esse dizer não é transigente e pode esconder o que transmite dado que a evidência não é o propósito nem o fim da arte.Há algo de secreto, melhor, de não visível, próprio, aliás, de toda a criação, que projecta a obra de arte para um plano distinto que se torna susceptível de vir a ser assimilado ou de banido ser. Daí que o olhar do espectador se tenha de envolver na obra para que a possa devidamente captar e dela usufruir. Dada a sua idade, Paiva Raposo não podia ser conscientemente contemporâneo dos conflitos que no século passado assolaram, entre outros territórios, a Europa e as colónias portuguesas do continente africano.É certo que a |
prestação sobre o horror da guerra fornecida por livros, jornais,filmes e por relatos descritos por participantes das citadas campanhas o devem ter deveras impressionado. Mas os meios de comunicação dessa época, dada a nossa censura oficial, não eram livres nem esclarecedores como o são actualmente. Quando, ao rondar os 40 anos, o pintor Paiva Raposo foi surpreendido pelo deflagrar de uma guerra europeia, a guerra na Bósnia, o cidadão e o artista estavam mentalmente e artisticamente preparados e aptos para recusar veementemente a morte, a dor e o luto, enfim a dolorosa tragédia sentida no nosso continente. Um cenário dantesco, impressionante, cujo fim se não previa, destruia gentes, cidades e culturas com uma fúria inaudita. Tolhido por tão pungente acontecimento, Paiva Raposo, como homem e como pintor, procurou através da sua obra denunciar tão aviltante realidade. Mas em vez de acumular, até à exaustão,provas visíveis dessa terrível tragédia que seriam facilmente identificáveis, optou por um processo diferente. Utilizou enigmaticamente uma linguagem própria, condensada, restrita em que reproduz o pavor provocado pela guerra na Bósnia. Na palidez de algumas cores , no escurecer de outras, nos traços salientes e carregados das telas, ordenadamente postos em evidência, há uma leitura pessoalíssima que merece ser soletrada e reflectida. Trata-se de um testemunho empenhado,de um grave alerta e de um aviso justo sobre o que foi aquela absurda e terrível violência. Eis a razão da relevância desta mostra de Paiva Raposo que nos vem relembrar, nunca é de mais fazê-lo, quanto abominável, desprezado e incontrolável foi esse flagelo recente dos nossos dias. Liberto Cruz, texto do Catálogo da exposição "O Silêncio", Fundação Medeiros e Almeida, Fevereiro de 2014. |
(…) No caso de Paiva Raposo encontramos nas suas peças uma diferença: Por um lado as gravuras realizadas por processo tradicional que podem ser concebidas como dípticos, ganhando grandes dimensões e adquirindo uma espectacularidade iniciática e, por outro, as chapas de ferro trabalhadas sobre a ferrugem com buril, ácidos e outros |
processos de incisão, que são posteriormente tintadas como se de facto uma chapa de gravura se tratasse, mas que é na realidade uma outra coisa, aliás com uma relação muito clara com a pintura que Paiva Raposo vem fazendo desde 1992. (…) Cristina Azevedo Tavares, texto do Catálogo da exposição “Gravura experimental”, Galeria de Arte Moderna, Sociedade Nacional de Belas Artes, 1994. |
Lo conoci en Florencia y desde el primer momento nos hicimos compañeros. (…) Pero hay mucho que le debo que no puedo olvidar, otra visione. Como buen portugues siempre tenia un pie avanzado en los descubrimientos; en este caso no eran los maritimos. No habia continentes, ni islas, ni razas. Fue algo mayor, como un viaje mefistofelico, sublime, que me llevo mas lejos de simple opiniones de papel y barro, a nuevos planetas donde minuciosamente conoci puntos de vista que no sospechaba; me hizo estar en el campo de Giorgione y en las profundidades de Masaccio, me hablo de los misticos y llenò los cuadros de telarañas perfectamente geometricas e |
maravillosamente construidas; me explico los gestos, las miradas, suposiciones, los marmoles paganos de santos y dudas; me sacudio y enseño la alquimia de los materiales, de las montañas, valles, rios, mundos, los relleno de colores y los hizo vivos y de aquel palpitar me hizo compañero, me enseño algo que sólo algunos artistas pueden enseñar; y aunque me confesara tener mil caballos cautivos que domar, la tranquilidad del humo de su pitillo me hacia entender que hubo, en otro tiempo, sacrificios parecidos que fueron gratos a los dioses (…). Jose Luis Lamela, Director da Galeria SIC-Bertrand, Vigo, 1991. |
In a dark cell everything becomes frightened you grab air and imagine unpleasantness in every object you touch. But slowly the seeing of the eyes change and that, that was strange, turns out to be wellknown. (…) In the portuguese Paiva Raposo’s paintings exists obviously a knowledge of the image that, we as observers, can change our view and, out of the obscure, slowly recognise the hidden. At the first sight, the paintings look as closed dark plates with only fade movements. But, when the eyes get used, you discover in this dumdness, a richness of variations. (…) |
Paiva Raposo’s dusky colors, which are worked very thin, make the underneath to come up to the surface. On this almost invisible way, the variations are balanced and give both a deepness and perspectiveness. Paiva Raposo’s paintings turns into a room of signs. Maybe a cellar or the dark iberian town behind day and night. The atmosphere is magic and mediative (…). Marten Castenfors in “The seeing of the search”, 1991. |
A pintura de Paiva Raposo tem um universo próprio que caminha ao lado da jovem pintura portuguesa pelo seu próprio pé, distanciando-se da entidade grupal que se constituíu na pintura no decorrer da última década. Até por isso constitui excepção. (…) A alusão a Berlim e ao fim do comunismo na Europa constituem polarizações/lugares que a pintura a seu modo evoca através das rotas matéricas e de uma cartografia de empastes pictóricos. A tela passa a ser o espaço utópico dos sentidos — ela não só aglutina todo o emaranhado das citações e dos humores recentes do tempo, como transforma em matéria melancólica o próprio processo |
das emergências e dos devires em curso. (…) A pintura não só evoca como refaz o mundo e a representação à escala de um saber, de uma técnica e de uma sensibilidade. Paiva Raposo não coloca linearmente as aquisições na tela. Trabalha-as, não por efeito de citação mas de densificação. (…) A luz que anima estes estados matéricos é um presságio sombrio, não cai de cima, processa-se por entre a mistura de elementos e de objectos que a tela incorpora. A raíz da pintura coincide com a germinação do mundo e o eclodir da representação. Evidentemente que há transtorno e perturbação entre as várias fases que esta pintura tão habilmente comemora sem ostentação (…). Emídio Rosa Oliveira in “Densidade e Utopia”, 1990. |
O trabalho de Paiva Raposo teve sempre que ver com matérias, texturas e luz. Por vezes joga-se mesmo num certo diálogo entre a luz e a escuridão (…). Para além de todo o carácter metafórico e de um certo ecletismo de que esta pintura vive, dois pontos nos parecem essenciais para a caracterizar: o sentido do absurdo, non sense, que não sendo abusivo se encontra no limite da descodificação dos mitos: da religião à política; o lado de ícone de que estas obras se revestem, sobretudo pelo tipo de luz e de matéria que a pintura utiliza. Uma luz suave, ao mesmo tempo sagrada e misteriosa que nos faz aproximar vagarosamente e vê-las com respeito por simularem coisas antigas. E mais uma vez aqui |
deparamos com a subtileza do absurdo, já que as imagens pretendem, enquanto registos e vestígios, serem desmitificadoras de um real sempre em processo. Poderemos entender esta pintura como um certo desafio, como o jogo de uma ambiguidade em que as imagens funcionam como uma espécie de despedida ou de expectativa, e nunca uma simples recolha de memórias e seus registos. É possível que nesta duplicidade se encontre o sentido mais interessante destas obras de Paiva Raposo, sobretudo se atentarmos nos contextos da arte actual. Cristina Azevedo Tavares in “Adágio para as imagens submersas”, 1990. |